EDIÇÃO 37 » MISCELÂNEA

O Blefe do século

E a contribuição de Sammy Farha para o poker


Pedro Nogueira

Há coisas que um jogador de poker só confessa sob tortura, numa daquelas sessões crudelíssimas de waterboarding, o famoso afogamento simulado. Por exemplo, o blefe. Sim, amigos: somente a técnica que a CIA usou para torturar árabes pode fazer um sujeito admitir o blefe.

Ainda esses dias, presenciei uma jogada curiosa. Numa mesa de Omaha $5-$5, o crupiê abre 2-3-4 no flop. Duas posições à minha esquerda, um grande amigo aposta o valor do pote. Era Escobar, o espanhol, que fez questão de dizer a palavra “pote” forçando o seu sotaque catalão. Desde a vitória da Espanha no mundial, Escobar ficara tomado por um fervor patriótico. Deixou o bigode crescer e não tirava, em hipótese alguma, sua camisa do Barcelona. Pois bem. Ele aposta o pote, todo mundo foge. Um parceiro mais curioso pergunta: “Seguiu?” Ao que Escobar responde: “Nuts, tinha 5 e 6”.

Alguma voz faz o comentário: “Eu tinha par de seis...” Súbito, um jogador desanda a gargalhar. E surge uma certa expectativa quanto à risada enigmática. Finalmente, ele toma fôlego e diz: “Eu também tinha par de seis!” Só então o fato ficou evidente! Ou o baralho estava adulterado, ou Escobar blefara. Como o crupiê era de uma credibilidade imensa, a segunda opção era a mais provável. Eis que Escobar limpa um pigarro e, com um cinismo admirável, esclarece o mistério. “Pensando bem”, ele diz, “eu tinha ás e 5. Segui para baixo”. Explicação, é claro, que ninguém comprou. E não há dúvida de que, caso alguém declarasse ter os quatros ases, Escobar anunciaria: “Então trinquei”.



Fiz tal introdução para chegar a Sammy Farha, o showman libanês. Eu não ousaria dizer que Sammy é o melhor do mundo. Realmente, há outros melhores, como Phil Ivey, que ganhou US$ 13 milhões apenas em torneios live, ou Phil Hellmuth, dono de 11 braceletes da World Series of Poker, ou ainda Johnny Chan, bicampeão do Main Event.

Mas há de se notar: o espetáculo que Farha dá na mesa, nunca se viu nada igual. A começar pelo cigarro apagado, que ele insiste em deixar na boca durante o jogo. Seu bom humor, também, parece à prova de bad beats. E, acima de tudo, Sammy é praticante de um poker loose-agressive heróico. Um gambler talentosíssimo. Quem assiste ao High Stakes Poker não deve ficar surpreso quando Sammy abre um pote com 5-7 naipado.

Imagino que, a esta altura da crônica, o leitor há de estar confuso. Comecei o texto discorrendo sobre o blefe e, súbito, mudei para Sammy Farha. Afinal, por quê? Acontece que Sammy (três braceletes, mais de US$ 2,8 milhões faturados em torneios, respeitadíssimo jogador de high stakes Omaha) deu, involuntariamente, uma das maiores contribuições para o crescimento do poker no mundo.

Ele caiu num blefe – potencialmente fatal – de Chris Moneymaker no heads-up do Main Event da WSOP 2003. Naquela jogada, Moneymaker ganhou moral, ganhou fichas e, logo depois, ganharia o próprio torneio. E provou que um amador como ele, um modesto contador do Tennessee, pode transformar US$ 40 (valor do satélite online em que a jornada começou) em US$ 2,5 milhões. Seguiu-se o “Efeito Moneymaker” e a explosão mundial do poker.



Na jogada, com blinds de 20K-40K, Moneymaker sobe para 100K segurando K7. Sammy paga com Q9. O flop traz 9-6-2. Os dois jogadores pedem mesa. O drama começa com o 8 que aparece no turn. Sammy (top pair e flush draw de “Q”) aposta 300K; Moneymaker (flush draw de “K” e duas pontas na seguida) dá um raise de 500K. Sammy paga. O inofensivo river trás um 3. Todas as pedidas de Moneymaker falham – mas, mesmo assim, ele anuncia all-in. O libanês, depois de muito pensar, larga a mão vencedora.

Eis a ironia do lance, amigos! Se Sammy pagasse o blefe, acabaria com o Moneymaker. Como consequência, ganharia US$ 2,5 milhões e teria o bracelete mais cobiçado do mundo. No entanto, o poker não desfrutaria do glamour e da popularidade que tem hoje. Ao errar na leitura, Sammy deu uma contribuição inimaginável para o poker. Dir-se-ia um mártir involuntário das cartas. Quase um santo.




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