EDIÇÃO 6 » MISCELÂNEA

O Caso do Bracelete de Ouro - Parte I


George Queiroz

Era uma noite muda e como de costume eu estava com as luzes do escritório apagadas para economizar energia. O cachimbo dançava de um canto a outro da minha boca, mas continuava apagado. Também estava economizando o fumo, mas fingia para mim mesmo que era o pulmão que eu economizava. Assim, tudo ficava mais simples. A luz do poste em frente à minha janela invadia minha sala, dando ao ambiente mais e mais o aspecto de um filme noir. Eu puxei o telefone para o canto mais iluminado da minha mesa e continuei o encarando. Eu aguardava uma maldita ligação que fosse, algum cliente traído querendo investigar a mulher adúltera. Um detetive particular, ultimamente, só tem vivido de romances fugidios. E eu precisava muito de dinheiro.

O telefone continuava tão mudo como a noite, e eu já estava certo de que não receberia ligação nenhuma. Provavelmente, a companhia telefônica cortara a linha por falta de pagamento. Procurei meu chapéu para deixar o escritório e voltar ao meu quarto úmido e oco daquele bairro triste onde eu vivia. O rapaz do andar de cima resolveu antes da hora costumeira colocar em sua vitrola seus discos de jazz e eu não suportava aqueles chiados dos discos riscados. Sim, definitivamente aquela seria outra noite improdutiva e eu devia ir para casa, ou passar no Joe’s para tomar um bourbon vagabundo. Foi quando a campainha tocou.

A princípio, pensei que fosse o telefone. Cheguei a correr para atender mas a linha sequer dava sinal. De fato, cortaram-na. Mas a maldita campainha insistia e eu finalmente percebi que era alguém chamando na porta. Quem diabos toca a campainha de um escritório, à noite, com as luzes todas apagadas? Provavelmente, algum cobrador que não me encontrou em casa nem no Joe’s, e sabe que não há outro lugar nesta cidade cinzenta onde eu poderia estar. Decidi não abrir a porta e aguardei pelo terceiro toque na campainha, mas uma voz feminina aveludada chamou-me pelo nome.
- Mr. Smith, eu sei que o senhor está aí. Preciso muito de sua ajuda.

Maldição! Deve ser a garota da loja de penhor querendo que eu mate outro rato, pensei. Mas a voz era serena, diferente da esganiçada que eu estava acostumado a ouvir. E a esta hora, a loja de penhor estava fechada e a garota provavelmente já se agarrava com os estivadores no píer. Novamente, a voz me chamava: - Mr. Smith, realmente eu preciso muito de sua ajuda. Aquilo me cheirava a encrenca. Por este mesmo motivo, eu decidi abrir a porta.

Uma mulher esguia e muito bem vestida entrou em minha sala. Sem que eu oferecesse, sentou-se na cadeira em frente à minha mesa e esperou que eu tomasse o meu lugar, o que eu fiz sem me demorar muito. Mantive a luz apagada, e ela não reclamou.
- Incomoda-se se eu fumar, Mr. Smith? – perguntou, já acendendo o cigarro.
- Na verdade, me incomodo sim. Estou tentando deixar o vício.
- Perdoe-me. Estou nervosa e quando me sinto assim, fumo um cigarro atrás do outro. Meu nome é Susan Creamcheese e gostaria de contratar seus serviços.

Não acreditava que alguém pudesse ter um nome ridículo como Creamcheese. Mas aquela mulher não parecia estar ali para brincadeiras. Comecei a analisar suas feições e estudar sua postura. Provavelmente, era um caso de extorsão. Algum meliante certamente estava ameaçando aquela mulher belíssima com bilhetes assustadores feitos de letras recortadas de revistas. E muito provavelmente o autor das ameaças era o mordomo, que precisava de dinheiro para o pagamento de uma cirurgia caríssima de um parente próximo... Caso resolvido, parecia ter saído das páginas de um romance policial chinfrim. Não lhe perguntaria em que lhe serviria meus préstimos, se isto não estivesse em primeiro lugar nos manuais dos detetives particulares.
- Em que eu posso lhe ajudar, senhora Creamcheese?
- Senhorita. O senhor me foi bem recomendado, menos pela sua capacidade do que pela sua discrição.
- Fico lisonjeado.

Susan Creamcheese abriu sua bolsa e tirou dela uma carta de baralho. Colocou sobre a mesa, ao lado do telefone onde a luz do poste lá de fora iluminava.
- Há dois meses, na caixa de correio da mansão de minha família, alguém deixou esta carta. Um 10 de ouros, como pode comprovar. Duas semanas depois, nossos dobbermans premiados estavam todos mortos...
- Não entendo como isto pode estar relacionado com o 10 de ouros.
- Gostaria que não me interrompesse, Mr. Smith, por gentileza. Pois bem. Duas semanas depois, um 8 de ouros foi deixado em nossa caixa de correio. Até então, não tínhamos relacionado a aparição da carta com a morte dos cães, mas na noite seguinte à aparição do 8 de ouros, meu pai recebeu um telefonema de seus empregados da fazenda, dizendo que seus cavalos premiados apareceram mortos.

Aquela história me soava tão absurda quanto o nome de sua narradora. Mas, como me pediu minha interlocutora, tentei não a interromper. Susan tirou da bolsa o cigarro e o acendeu, a despeito de meu pedido inicial para que não fumasse.
- Meu pai ficou muito sentido. Mais do que a perda patrimonial de animais premiados, ele tinha muita afeição por aqueles bichos estúpidos. Quando nosso mordomo sugeriu uma possível ligação entre o aparecimento das cartas de baralho e as mortes dos animais, meu pai colocou um segurança para vigiar a caixa de correio. Mas de nada adiantou. Uma semana depois das mortes dos animais, ao ler seu jornal durante o desjejum, meu pai empalideceu ao ver que do jornal caiu uma carta de baralho, um valete de ouros. Na noite seguinte, seus Rolls Royces foram incendiados dentro da garagem.
- Deixe-me adivinhar. É elementar... a senhorita está preocupada com o a aparição de um ás de ouros, o que causará ao seu pai outro atentado e conseqüentemente, um dano patrimonial. Como os o ás é a carta de valor mais alto, tudo indica que este será um último e poderoso ataque!
- Mr. Smith, sinceramente, o senhor começa a me fazer arrepender-me de não procurar um detetive mais renomado. Peço novamente que evite me interromper, especialmente se for para fazer seus julgamentos equivocados.

A moça ruborizou de irritação, provavelmente por causa das minhas intromissões. Eu me levantei e caminhei em círculos pela sala, enquanto Susan continuava sua narrativa.
- Vou tentar abreviar a história. A casa já estava repleta de seguranças e policiais quando apareceu uma nova carta. Desta vez, um 2 de ouros apareceu junto ao aparelho de barbear de meu pai. Desta vez, nosso iate foi o alvo. Romperam seu casco e ele afundou. O Capitão Black, que dormia dentro dele, não ouviu nada que o fizesse suspeitar do ataque. Meu pai se esqueceu de proteger o iate e ele foi alvo fácil. Foi o último ataque.
- É um caso complicado. Felizmente, não houve nenhuma morte.
- Por enquanto. Acreditamos que em breve meu pai sofrerá um atentado contra sua vida. Tão logo quanto avistarmos um rei de ouros.
- Que a faz crer que será justamente esta carta? Aparentemente, não há nenhuma lógica na ordem de aparições das cartas.
- O senhor joga poker, Mr. Smith? Se observar bem, verá que as quatro cartas, mais o rei que ainda vai aparecer, formam um flush, uma das combinações mais valiosas do jogo.

Eu forcei um pigarrear, para dar a Susan a impressão de que eu me incomodava com a fumaça de seu cigarro. Eu não tinha atinado para o fato de que as cartas eram todas do mesmo naipe, mas não podia deixar que Susan percebesse isso. Como ela não se importava com meu incômodo frente ao seu cigarro, resolvi sentar-me e acender finalmente meu cachimbo. Aceitaria aquele caso e com os honorários, poderia dar-me ao luxo de queimar então algum fumo que eu economizara.
- Claro que eu percebi o flush! Minha pergunta foi em relação ao rei. Como sabe que será justamente esta carta? E como sabe que ela realmente aparecerá?
- Pensei tivesse dito que não fumava.
- Não disse isso. Apenas falei que me incomodava caso a senhorita fumasse, o que me parece que não a constrangeu a fazê-lo.
- 10, 8, J, 2 e K, de ouros. Foi com essa mão que meu pai ganhou há muitos anos atrás um bracelete em um torneio mundial de poker. O bracelete está bem guardado em um cofre na Suíça, por parecer um alvo evidente. Mas tememos pela vida do meu pai, já que sistematicamente, o agressor foi acabando com as coisas das quais meu pai mais se orgulhava em sua vida. Foi como matá-lo aos poucos. Falta agora apenas o golpe de misericórdia.

Fiquei uns minutos tentando raciocinar sobre o caso. Era mais complicado do que a média dos casos que já assumi. De fato, nos últimos meses só tenho recebido casos de adultério, então este novo mistério conseguiu me excitar. Parecia evidente que o agressor seria o adversário derrotado no torneio e eu me envaidecia intimamente de minha inteligência. Mas se fosse um romance policial ou um filme noir, o suspeito seria a própria Susan, como ensinam nos manuais dos detetives particulares.

Susan levantou-se e tirou da bolsa um cheque e um bilhete, além das outras três cartas de baralho de que me falara.
- Aqui está o seu adiantamento. No bilhete está meu endereço. Esperamos o senhor lá amanhã às dez horas – disse, e saiu silenciosamente.

Fiquei um tempo imóvel em minha cadeira, pitando meu cachimbo. Passei os olhos do telefone às cartas, destas ao bilhete e finalmente ao cheque. Como ele estava fora do feixe de luz que iluminava porcamente minha mesa, não pude ver o valor. Mas já era alguma coisa que acalentaria minha conta bancária faminta. Sorri com a boca torta para não derrubar o cachimbo e pensei em pagar a conta telefônica no dia seguinte. Já não precisava mais economizar então decidi que um pouco de luz faria bem ao meu raciocínio. Liguei o interruptor, mas este não acendeu. A maldita companhia de eletricidade já havia cortado também a luz.




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